Inundações no Rio Grande do Sul: 'Cidades inteiras terão que mudar de lugar', diz pesquisador - BBC News Brasil (2024)

Inundações no Rio Grande do Sul: 'Cidades inteiras terão que mudar de lugar', diz pesquisador - BBC News Brasil (1)

Crédito, Amanda Perobelli/Reuters

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  • Author, Ligia Guimarães
  • Role, De São Paulo para a BBC News Brasil

"O comportamento das chuvas mudou. Eu tenho feito um levantamento e já percebi que de 2013 pra frente nós temos um acumulado de precipitação [chuvas] no mês de mais de 300 mm. A minha pergunta é: o que nós, por exemplo, na Defesa Civil, temos programado para prever essas possibilidades? Em algum momento, vamos começar a ver [inundações] em áreas em que a água não chegava com tanta frequência e vamos lembrar disso que estamos falando aqui."

O alerta acima, feito em junho de 2022 durante uma audiência pública na Câmara Municipal de Pelotas (RS) e apontado em vídeos nas redes sociais como "profecia" à luz das inundações que já deixaram pelo menos 90 mortos no Rio Grande do Sul, é do ecólogo Marcelo Dutra da Silva, doutor em ciências e professor de Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

Na ocasião, durante um debate sobre mudanças climáticas, o pesquisador chamava atenção para o fato de que muitas cidades gaúchas estavam totalmente despreparadas para chuvas extremas: não sabiam quais eram suas áreas de risco, quais regiões eram vulneráveis a inundações, ou quem seriam os primeiros moradores do Estado a serem atingidos pelas águas.

"Não podemos impedir que o evento climático ocorra, nem os próximos, porque eles vão acontecer. Mas dá para sermos mais resilientes a isso? Dá. Talvez se nós já tivéssemos afastado as pessoas das áreas de maior risco. É possível saber onde o evento se torna mais grave primeiro", pondera, acrescentando que um planejamento ambiental teria tornado possível, por exemplo, retirar moradores das áreas mais vulneráveis com antecedência.

Diante das cheias devastadoras que atingem o Rio Grande do Sul menos de seis meses após enchentes que destruíram parte da serra gaúcha em novembro do ano passado, o pesquisador defende que, desta vez, a resposta do poder público precisa mudar radicalmente.

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"Não adianta querer reconstruir tudo o que foi destruído nesse evento de agora tentando fazer como era antes. Isso já não dá mais".

A reconstrução do Rio Grande do Sul, diz o acadêmico, precisará ser planejada considerando quais as áreas mais seguras e resistentes às variações climáticas extremas, que vieram para ficar.

"Cidades inteiras vão ter que mudar de lugar. É preciso afastar as infraestruturas urbanas desses ambientes de maior risco, que são as áreas mais baixas, planas e úmidas, as áreas de encostas, as margens de rios e as cidades que estão dentro de vales", diz.

Tais mudanças envolverão o que ele chama de "desedificar": remover as estruturas das cidades que estão em áreas de risco e recomeçar em regiões mais seguras.

"Precisamos devolver para a natureza esses espaços que estão mais sensíveis ao alagamento", diz.

Onde está o maior perigo: vales e margens

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Grande parte do despreparo das cidades para a nova realidade climática se dá porque elas crescem sem considerar a geografia do Estado e seus níveis de vulnerabilidade diante das previsões climáticas, bem como a preservação da natureza.

"Os municípios gaúchos vêm enfrentando um forte crescimento urbano sobre áreas úmidas remanescentes", explica.

Não se trata apenas de retirar a população que mora em áreas de encostas, mas todas as regiões sensíveis a situações de alagamento e deslizamento.

Em geral, as áreas mais valorizadas pelo setor imobiliário para grandes empreendimentos e pela própria população são justamente as mais vulneráveis a inundações: próximas a margens de rios e lagos, ou em áreas planas, baixas e úmidas.

Além de menos resilientes, as áreas úmidas têm papel importante na prevenção de enchentes, já que deveriam servir como "esponja" em períodos de chuvas fortes, explica o pesquisador.

"Essas áreas são importantes porque tem o que chamamos de efeito esponja: esse serviço dado pela natureza é justamente para que quando há uma grande carga d’água ela vá para lá, e as zonas mais altas fiquem seguras", diz.

Do ponto de vista do risco ambiental, as decisões de expansão urbana têm ido na contramão da segurança, diz o ecólogo.

"Estamos fazendo o contrário do que deveríamos: estamos indo para dentro de onde não deveríamos ir, nos expondo ao risco, criando situações que colocam vidas em perigo, e prejuízos recorrentes."

Tragédia repetida

Outro aspecto geográfico do Rio Grande do Sul que precisa ser considerado na adaptação à nova realidade climática é que há muitas cidades localizadas dentro dos vales de rios, que são áreas de baixa altitude cercadas por áreas mais altas, como morros e montanhas, e próximos à água.

"Tem várias cidades inteiras que estão em região de vale: áreas sujeitas a receber grandes cargas de água em um evento extremo como esse. E aí não adianta reconstruir aquela cidade dentro do vale, porque ela vai continuar ameaçada. Porque os eventos climáticos vão se repetir", afirma.

Ele cita o exemplo de Muçum, cidade no Vale do Rio Taquari.

Reportagem da BBC News Brasil mostrou que o município já havia sido afetado por inundações três vezes durante 2023 – a primeira em junho, que vitimou 16 pessoas no estado; em setembro, quando 53 pessoas morreram em decorrência da passagem de um ciclone extratropical; e em novembro, quando mais de 700 mil pessoas foram afetadas por chuvas torrenciais.

"Temos exemplos de cidades que foram atingidas em 22, 23, e as pessoas perderam as coisas pela quarta vez, como Muçum, Lajeado. Algumas pessoas já estão tão desalentadas que já dizem em entrevistas que nem compraram mais móveis, mais carro, porque sabem que vão perder de novo”, diz, destacando que nesse caso, a falha do poder público foi permitir que as famílias reconstruíssem suas vidas no mesmo lugar, sem oferecer planos de moradia mais seguros.

"Esse novo plano de reconstrução precisa vir com um plano de adaptação às mudanças climáticas", afirma.

Nova lógica para a reconstrução

O acadêmico, que defende que todas as cidades atingidas revisem seus planos diretores antes de reconstruir tudo o que foi perdido, diz que "não adianta mais querer construir, ou reconstruir tudo o que foi destruído nesse evento de agora tentando fazer como era antes".

Para o professor, tanto governo estadual quanto federal poderiam estimular tais revisões, talvez colocando-as como requisitos para que as prefeituras tenham acesso aos recursos para financiamento da reconstrução.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), já declarou que o Estado vai precisar de um "plano Marshall", fazendo referência ao plano de reconstrução na Europa após a Segunda Guerra Mundial.

O plano de reconstrução das cidades, alerta o pesquisador, não poderá mais se basear em edificações nas áreas baixas, planas e úmidas e ambientes de margem de rios, lagos e córregos, como acontece em muitas cidades da costa, como Pelotas, e mesmo em bairros de Porto Alegre próximos ao Lago Guaíba.

"O olhar daqui para a frente precisa ser mais técnico, e pensar em adaptar a cidade para situações tão extremas".

"Críticos vão dizer que estamos preocupados só com a biodiversidade, e argumentam que é preciso pensar na vida das pessoas, no desenvolvimento. Se eu estivesse só preocupado com a biodiversidade tudo bem, mas nem estamos mais falando disso, neste caso", afirma. "Estamos falando de sobrevivência, porque significa você colocar lá um empreendimento e ele ficar debaixo d’água."

Mais resistência a extremos

Outro aspecto importante da reconstrução do Estado, que será longa e árdua, será investir em estruturas mais preparadas para eventos climáticos.

"Vamos ter que reconstruir, sim, só que agora pensando em pontes que são muito mais elevadas e robustas, estradas que são muito mais preparadas e resilientes a processos tão extremos de presença de água".

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Crédito, AMANDA PEROBELLI/REUTERS

Tecnologias para alertar a população de maneira mais eficiente sobre potenciais desastres, na visão do professor, têm efeito limitado se não vierem acompanhadas de mudanças mais drásticas.

"Quaisquer tecnologias de aviso serão inúteis se continuarmos mantendo as pessoas e as infraestruturas nos lugares que estarão sempre em risco. O que adianta avisar que as pessoas saiam se elas vão perder absolutamente tudo?", questiona.

"O investimento rápido vai ter que ser na correção dessas cidades, na atualização dessas cidades, para que a gente se torne mais adaptado a essa nova condição. Porque não é só alertar".

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Crédito, RENAN MATTOS/REUTERS

Em outra frente, o pesquisador diz que é preciso investir em formas menos centralizadas de construir as cidades, de modo a permitir que a água flua com mais facilidade para o oceano.

"Precisamos permitir que a água passe, que a água flua, em vez de tentar barrá-la. Temos que recuperar, por exemplo, a vegetação natural nas áreas de preservação permanente e de produção".

Outra recomendação, considerando que os eventos climáticos extremos também prevêem períodos de intensa seca, é aproveitar os períodos de chuva para armazenar água em sistemas de açudes ou outros reservatórios hídricos.

"Boa parte dessa água toda chovendo agora está simplesmente sendo perdida e em algum momento vai fazer falta, porque está chovendo muito agora e vai chover muito pouco depois".

Convencer a população de que a nova realidade climática veio para ficar, diz, é parte importante do trabalho de evitar novas tragédias ambientais.

"Infelizmente tem gente que acha que isso aconteceu, mas amanhã passou e vida que segue", lamenta. "Não é um momento; é um período que talvez será assim por muito tempo, e precisamos nos preparar para nos encaixar dentro dele".

Inundações no Rio Grande do Sul: 'Cidades inteiras terão que mudar de lugar', diz pesquisador - BBC News Brasil (2024)

FAQs

Quais as cidades mais afetadas pela enchente no Rio Grande do Sul? ›

Canoas e Eldorado do Sul estão entre as cidades mais afetadas pelas chuvas no sul.

Qual é a causa das enchentes no Rio Grande do Sul? ›

“A cada tempo, há chuvas extremas que causam enchentes”, completou. Desta vez, contudo, ocorreu no estado a enchente mais forte de toda a história, que ele atribui, em parte, à mudança climática causada pelo excesso de gás carbônico na atmosfera. “Essa é a parte natural do evento”.

O que causou a enchente no Rio Grande do Sul em 2024? ›

Um bloqueio atmosférico causado por um sistema de alta pressão atmosférica no Centro-Sul do Brasil impediu o deslocamento de sistemas meteorológicos típicos (ciclone extratropical, frente fria, cavado) que causam precipitações.

Quantos municípios do Rio Grande do Sul foram afetados? ›

O número de municípios afetados pelas chuvas que atingem grande parte do Rio Grande do Sul subiu para 463 (93,12% do estado), segundo o boletim das 9h, divulgado pela Defesa Civil, neste domingo (19/5). O número de desaparecidos foi de 94 para 89.

Qual foi a cidade mais afetada no Rio Grande do Sul? ›

Eldorado do Sul (RS)

Debaixo d'água há mais de 15 dias, Eldorado do Sul, a pequena cidade gaúcha com o maior número proporcional de pessoas desalojadas e com quase 80% da população afetada pela enchente, começa aos poucos a entender a dimensão da tragédia.

Quais cidades do Rio Grande do Sul foram alagadas? ›

No sul do estado, a Lagoa dos Patos não para de subir. As enchentes avançam sobre as cidades de Pelotas, Rio Grande e São Lourenço do Sul. O último boletim divulgado pela Defesa Civil contabilizava 145 mortos e 132 desaparecidos.

Como está o Rio Grande hoje? ›

Sol com muitas nuvens durante o dia. Períodos de nublado, com chuva a qualquer hora.

Quais as últimas notícias do Rio Grande do Sul? ›

RS registra 130 prisões por crimes relacionados às cheias
  • RS registra 130 prisões por crimes relacionados às cheias. Há 8 horas Rio Grande do Sul. ...
  • Rio Grande do Sul. Homem que morava em caminhão durante enchentes é assassinado em rodovia no RS. ...
  • Memória. ...
  • A vila gaúcha centenária varrida pela enchente. ...
  • Tragédia. ...
  • Porto Alegre.

Quantas pessoas desapareceram no Rio Grande do Sul? ›

De acordo com a Defesa Civil, 94 pessoas estão desaparecidas por causa da enchente no Rio Grande do Sul.

Quantos mortos na enchente do Rio Grande do Sul? ›

Enchente no RS: veja lista atualizada com os nomes dos mortos e desaparecidos. O último balanço da Defesa Civil sobre os impactos das chuvas no Rio Grande do Sul mostra que o estado tem, até o início da tarde desta quarta-feira (15), 149 pessoas mortas e 108 desaparecidas.

Quantas pessoas morreram na enchente de 1941 no Rio Grande do Sul? ›

O lago (ou rio) Guaíba, que banha a capital gaúcha Porto Alegre, bateu um recorde histórico de 5,31 metros neste domingo. Até esta quarta-feira (8), a Defesa Civil do Rio Grande do Sul indicou que foram 95 mortos, 128 desaparecidos e 225,4 mil fora de suas residências.

Quais as cidades do Rio Grande do Sul que estão em calamidade pública? ›

Municípios em estado de calamidade pública:
  • Arambaré
  • Arroio do Meio.
  • Barra do Rio Azul.
  • Bento Gonçalves.
  • Bom Retiro do Sul.
  • Candelária.
  • Canoas.
  • Canudos do Vale.
4 days ago

Qual foi a maior enchente da história do Rio Grande do Sul? ›

Como foi a enchente de 1941

Na ocasião, o rio Guaíba atingiu a marca de 4,76 metros no dia 8 de maio. E no dia 5 de maio de 2024, essa marca foi superada: o rio atingiu 5,35 metros. Com 272 mil habitantes, a capital gaúcha teve cerca de 70 mil desabrigados, o que corresponde a um quarto da população da época.

Qual foi a pior enchente do Rio Grande do Sul? ›

A enchente de 1941

Consequentemente, aconteceu a elevação do nível dos rios do estado. Segundo o museu Joaquim Felizardo, o nível do Guaíba chegou a marca de 4,75 metros — de acordo com a CNN, algumas publicações falam até em 4,76 metros. Cerca de 70 mil pessoas ficaram desabrigadas.

Quantas pessoas foram atingidas pela enchente no Rio Grande do Sul? ›

A Defesa Civil aponta ainda que 540.192 pessoas foram desalojadas, sendo que 78.165 delas estão em abrigos. O número total de pessoas diretamente afetadas chega a quase 2,3 milhões. O total de feridos se mantém estável desde a última semana: são 806.

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